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Burocra Tuga

Dentro do imaginário do imigrante brasileiro está a ideia ingênua e utópica, de que ao adentrar países ditos desenvolvidos, todos os problemas recorrentes e insuportáveis do dia a dia tupiniquim serão meras lembranças ruins e distantes. Ledo engano.

É evidente que cada lugar possui sua particularidade negativa, mas deparar-se com o inferno da burocracia portuguesa me fez repensar sobre a celeridade e, até mesmo, o carisma de nossos digníssimos tabeliães. Em terras lusitanas, a história é outra: a emissão de documentos demora, por baixo, umas três vezes mais.

Vamos ao causo: coloquei meus belíssimos pezinhos (com suas unhas a fazer, como sempre) no Porto, já como cidadão português. Esperei todos os documentos estarem certinhos, para não correr o risco de algo dar errado logo no início de minha aventura no velho continente. Pois bem, a única missão designada a mim dizia respeito ao tal NIF, o número de identificação fiscal, também conhecido por “o CPF deles”. Ansioso que sou (e as caixas empilhadas de ansiolíticos não me deixam mentir), fiz questão de tentar resolver logo essa pendência, indo para o assombroso prédio de Finanças, cuja fachada já me despertou

os piores sentimentos. Foram duas longas horas na fila para ser atendido.

- Olá, bô tarde (isso sou eu tentando replicar o sotaque portuense). Gostaria de tirar um NIF, por favor.

A moça pega meu cartão de cidadão (RG) e olha no sistema: consta que eu ainda moro no Rio de Janeiro.

- Sim, senhora, eu acabei de me mudar. Ainda não alterei a morada (endereço).

- Sinto muito, mas, para tirar o NIF, precisas estar com a morada em Portugal constando no cartão cidadão. Eu até posso fazer isto aqui, mas tu terias que me mostrar um comprovativo de morada. Tens aí contigo?

-Não tenho. Posso ver de colocar meu nome no contrato de arrendamento (aluguel) do apartamento que estou morando agora. Serve?

-Serve.

Ok, esse primeiro fracasso machucou um pouco minha autoestima, mas pelo menos a solução parecia clara e fácil. Só parecia.

Conversando com o proprietário do apartamento, descubro que meu nome não pode aparecer no contrato de aluguel, já que eu não tenho NIF. Sim, é isso mesmo que você leu: não posso tirar o NIF sem comprovativo de morada e não posso ter comprovativo de morada sem o NIF. Uma sinuca de bico, ó pá.

O bom é que os portugueses sempre têm uma solução, mesmo quando você já está sem forças para continuar lutando. O proprietário me aconselhou a ir numa Junta da Freguesia local (cartório) e buscar um documento específico, cuja única função é provar que eu estou morando aqui. Lá fui eu, já antevendo a desgraça acontecer.

Bom, o documento, de fato, existia; a moça me deu o papel sem maiores problemas. O porém, e é um grande porém, é que o documento precisava de DUAS testemunhas, que estivessem presentes no momento da assinatura do papel e que, não obstante, MORASSEM na mesma freguesia que eu. Obviamente, como tinha acabado de chegar, não havia quórum suficiente para atestar o óbvio. O desespero tomou conta.

Meu companheiro de quarto Vicente sugeriu abordarmos transeuntes nas ruas próximas à Junta, mas a ideia não vingou, ainda mais porque, na tentativa de me ajudar, ele recorreu a uma colega sua de faculdade, portuguesa. De início, ela parecia estar disposta a ajudar a resolver o drama do menino sem NIF, servindo como testemunha; no entanto, após conversar com o ADVOGADO DA FAMÍLIA (essa é a minha moral), concluiu que era um passo arriscado e que tudo não passava de um conluio de brasileiros nefastos para transferir dívidas a um bom samaritano local. Trocando em miúdos, ela achava que eu ia deixar o nome dela sujo. Voltamos à estaca zero.

Quase sem esperanças, fui com minha prima Joana (um anjo protetor) num local chamado Loja do Cidadão; aparentemente, o espaço serve para tratar de questões referentes ao RG. Depois de mais um chá de cadeira, uma atenciosa e bem-humorada senhora portuguesa nos recebe e (aleluia) dá boas notícias.

-Não precisas fazer nada disso que te falaram. Eu posso alterar sua morada agora mesmo, MAS tu terás que fazer outro cartão de cidadão. São 18 euros, por favor.

Meio a contragosto, paguei a taxa e recebi mais um documento.

- Com este documento de emissão de cartão cidadão, já podes usar o teu NIF.

A senhora anotou à caneta o meu glorioso e suado número fiscal e eu respirei aliviado. Não tão cedo, meu caro colonizado.

Como eu estava sem o NIF, não conseguia fazer coisas simples, como comprar um chip de telefone ou abrir uma conta no banco. Com os númerozinhos já prontos, fui correndo ao banco com as menores taxas, crente que ia dar esse passo importante na minha nova vida. Ao chegar no ActivoBank, esperei cerca de (mais) uma hora, até ser finalmente atendido. Mostrei, orgulhoso, meu mais novo documento e, para a surpresa de ninguém, ele não servia.

A moça do banco olhou, chamou um colega, foi lá para dentro, falou com o chefe, voltou, tirou fotos e, por fim, concluiu: não dá para abrir a conta sem o cartão cidadão com o novo NIF. Ela até mencionou uma remota possibilidade de buscar mais um documento nas Finanças, mas aí eu já tinha desistido. Resolvi esperar chegar o bendito cartão pelos Correios. O prazo era de uma a quatro semanas.

Os dias passavam, a angústia aumentava. Por que os deuses não me deixavam regularizar minha situação? O que eu havia feito de errado. Todos os dias, cumpria o ritual de olhar a caixa do correio, sempre vazia, embolorada, com cartões de mecânicos se acumulando. Após um mês, resolvi tomar medidas mais enérgicas e fui, de terço na mão, novamente à Loja do Cidadão. Era agora ou nunca.

Mais fila, mais horas perdidas e finalmente chegou minha vez. Quase chorei de emoção ao ver o danadinho escondido nos escaninhos de madeira, pronto para ser exibido com orgulho para gerentes de banco e atendentes da Vodafone. Documento em mãos, finalmente.

O desfecho, pelo menos, foi feliz; hoje estou regularizado, com conta aberta e chip funcionando. Obviamente, ambos os processos também demoraram uma eternidade, mesmo eu estando com tudo certo. A “burocra tuga” é perversa e pode enlouquecer os mais incautos. Tomem muito cuidado.


Texto de Gabriel Cassar - Jornalista e escritor, residente em Portugal e agora colunista deste blog, dividindo as experiências da rotina na Terrinha.

Para qualquer dúvida sobre dupla cidadania: contato@chagasecassar.com.br

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