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  • Foto do escritorchagasecassar

Um clube de bairro

Atualizado: 10 de abr. de 2020

Divididos numa cisão física, ideológica e cultural, Sul e Norte de Portugal, por vezes, escondem os pormenores de cada uma dessas regiões, ficando difícil enxergar as peculiaridades existentes em cada distrito e bairro. A rivalidade (muito maior do que Rio x São Paulo, por exemplo) acentua as diferenças entre seus povos que, de fato, possuem características marcantes e distintas no jeito de falar, de tratar os outros, de viver, comer e se vestir.

Na Winterfell Nortenha, temos o Porto e seus distritos. Às margens do rio Douro, um clube de futebol é capaz de unir todo o orgulho local: o Futebol Clube do Porto. Nos bares, restaurantes, lojas e monumentos, é quase sempre possível avistar o escudo redondo e azul ou o dragão, simbolizando a força da equipa tripeira.

Como não sou chegado ao mainstream, resolvi conhecer um clube e um estádio menos ortodoxos na cidade, com uma pegada mais de bairro. Estou a falar do Boavista e de sua charmosa cancha, o Bessa.

A experiência é de fato muito diferente. Campeão da Liga Portuguesa uma única vez (em 2001), o Boavista é o time alternativo do Porto, bem menor e com pretensões mais modestas do que o irmão mais famoso. Na última semana, fui até o Estádio do Bessa junto com três amigos, a fim de verificar com meus próprios olhos, a experiência de torcer pelos axadrezados.

Logo de início, as diferenças foram ficando mais nítidas. Diferentemente das modernas arenas que pululam afastadas dos grandes centros para comportar o enorme número de adeptos dos times grandes europeus, o Bessa surge quase que de supetão, depois de uma caminhada tranquila da estação de Francos. Na frente do estádio, os torcedores reúnem-se para tomar um último fino e comer alguma coisinha antes de entrar para assistir ao jogo. Uma enorme estátua de pantera negra compõe a identificação do clube, mascote intimidadora e motivo de orgulho dos adeptos.

O público era modesto, não mais de 5, 6 mil pessoas. Na entrada, alguns ingressos chegavam a ser oferecidos como cortesia. Tentando absorver o máximo da experiência, fomos tentar entrar no setor destinado aos Ultras do Boavista, onde se concentra a claque. Curioso, o segurança da catraca me olhou e perguntou se eu era Boavisteiro. Não menti, disse que queria ficar junto à parte mais fanática do público, o que causou um sorriso no gajo, claramente um Pantera Negra em dia de ofício.

Algumas curiosidades: um jovem sem camisa era o responsável por reger o coro dos torcedores e seu instrumento era um megafone. Focado na sua missão, o mancebo não deixava a peteca cair, puxando música atrás de música, sempre acompanhado de seu fiel escudeiro tocando surdo. O ritmo também me chamou a atenção: a batucada remetia aos toques africanos, bem diferente do samba do Rio ou do ritmo cadenciado dos hinchas argentinos.

Palavras de protesto contra a Liga Portuguesa e a emissora de televisão SPORT TV eram proferidas a todo momento. A ideia de ser resistência ao futebol moderno estava ali, estampada nos olhos e presa na garganta da claque, que gritava a plenos pulmões o orgulho de ser diferente.

De repente, um bandeirão subiu e a torcida ficou agitada, movimentando-se para lá e para cá. Logo depois, percebi que, para além de querer exibir o mosaico xadrez de pano, a ideia era esconder os sinalizadores, espalhados por baixo do tecido e que explodiam com a cor branca. Enquanto a farra rolava, crianças corriam de um lado para o outro, se empurrando, brincando umas com as outras e se divertindo, como se o jogo fosse um pretexto para se reunir com seus colegas de bairro.

Dentro de campo, a experiência não foi lá muito agradável. O Boavista foi derrotado pelo Gil Vicente por 1 a 0, jogando um futebol sofrível até para mim, que vejo Campeonato Carioca. Alheio ao desânimo causado pelo fracasso dentro de campo, o jovem regente sem camisa olha nos olhos de sua claque e diz:

- Fodam-se eles. Nós estamos aqui pelo Boavista e não pelos jogadores. Cantem pelo Boavista.

E todos cantaram felizes.


Texto de Gabriel Cassar - Jornalista e escritor, residente em Portugal e nosso colunista quinzenal.


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